segunda-feira, outubro 01, 2007

Ai povo de Lisboa

Pelos dedos, pelos olhos, pelos ouvidos, pelos de rato, há tamanhos ratos imundos nesta cidade! há nela um arco íris de diamantes
algures nesta cidade
há um frenesim de bigodes a roçar no autocarro junto às coxas de uma jovem e pombos citadinos frequentando os prédios bolorentos, há crimes cometidos sem qualquer paixão
e histórias nada interessantes contadas por ilusionistas
algures nesta freguesia se aquecem as brasas para as sardinhas congeladas, moídas, empapadas, semi-cruas a sangrar, e esta cidade, em verdade, era sinceramente formosa quando tinha pessoas a sério, bigodes a sério e se cantava o fado da mesma forma que se cometiam os crimes antigamente. O maior problema, é que os de antigamente, não tiveram filhos. Cruzou-se o povo com a nobreza, com a burguesia, com o clero, com a televisão, com os americanos e as telenovelas brasileiras, com o hamburguer e o pão espalmado. Bastardos. Lisboa antes era rica em Alfaces e agora apodreceu de prédios velhos e interesses imobiliários e qualquer dia, no futuro, as marchas populares terão de recrutar ucranianos, moldavos, chineses e palopes para terem alguém ainda a desfilar. Sim, porque os americanos não o farão, os directores de programação não o farão, o Pinto Balsemão não o faria, só os hamburgers marcham e marcharão. Nesse dia, talvez este povo se sinta abandonado como um dia abandonou o passado. Sardinha moída, empapada. Sardinha moída com coca cola.

quarta-feira, setembro 19, 2007

trim trimmm trim

Sempre o tempo
Sempre por instantes
a luta roda viva roda tonta range dentes rasga olhos apertem-lhes os narizes a ver se o soluço passa e já não existem banquinhos de jardim onde possamos encontrar soluções fresquinhas ou a vizinha com um arrufo de paixão a tremer de medo com vontade de nos cair no colo
os cães são indisciplinados, o frigoríficos indisciplinados, a história é indisciplinada, a vontade dos homens sobre a vontade dos outros homens é indisciplinada, as cáries são indisciplinadas o oregãos não querem ser oregãos e abrem-se cada vez mais escolas porque são negócios, porque da terra tem de brotar dinheiro e todos temos de vestir na moda e sim senhor sim senhora que bem que ele está que perfeitinho que ele é, sem gorduras, só orgulho e gravatinhas afiadas, cinturinhas descaídas, morais buriladas, abdominais postiços lombos postiços sorrisos postiços reais postiços superiores postiços mediadores ainda mais postiços homosexuais postiços heteresexuais postiços pretos postiços bacanos postiços e pouco é mesmo assim, é tudo pré congelado seleccionado carimbado e requalificado. Biológico é o que cresce com biológico e mata com biológico pela mão do homem que é produto biológico garantidamente garantido por ele mesmo
toupeiras de olhos abertos a cuspirem sermões e conhecimentos
maestros que não têm carta de condução e músicos que não sabem ouvir
médicos que nunca sofreram de coração mas de enfartes causadas por batidas de côco nas Bahamas os navios já só têm velas por que fica bem
por instantes o passado soa bem porque alimentamos em conjunto a ideia de que perdemos algo de bom, algo que nos era querido, como um ente ou simplesmente uma sensação de algum conforto. Será o futuro que nos mete medo ou a possibilidade de alguém vir lá detrás e reclamar? O confronto, o assombro e o terror melodramático de uma disfunção eruptiva no social, no bacanal do social tu não penses pá tu compra pá tu não questiones pá está aqui tudo prontinho para levar para casa tu não penses nisso
"pague antes morra depois(anónimo)"!

terça-feira, junho 26, 2007

Tudo termina como começa. Bastam-se as palavras que não se sabem dizer na comoção ocular da retina, nas palmas das mãos humedecidas, na respiração inversa e ofegante. Bastam-se os momentos imaginados quando a realidade não nos é suficiente. Eleva-se a morte e a vida, rompe-se com a rotina. Afundamo-nos de qualquer forma. Caímos nelas, no princípio e no fim.

Doem-me as mãos de lhes faltar algo.

Fiz por cultivar nas minhas costas uma sementeira negra quando julgava ter o gigantismo de carregar o mundo inteiro nelas. Construí os pilares da casa cimentando-os num contorcido sofrimento sem pensar que algum dia o cimento ardesse como papel. Disfarcei a única palavra que sei dizer verdadeiramente com a verdade e mentira numa só melodia. Não podia ter dado mais das minhas entranhas!

Enquanto escrevo outros textos ficam por escrever em palavras indenunciáveis e incompreensíveis, que crescem e se constroem em justaposição e choros turbilhantes, vortiçazes, rasgadramáticos, ensandecedoramenteviolentos por serem palavras sem som, sem cor. Amanhã, no lago estagnado de outro dia qualquer de silêncio, adormecerão os destroços das palavras não ditas.

Enquanto cresço vejo em mim a criança, que como se diz por aí vive em nós, o vagabundo chamado criança, que fica a decorar os momentos de brilhos, os momentos de choro, a mão quente no rosto e a festa na cabeça.

Enquanto penso outros dedos me tocam o meu corpo, a base celestial com que maquilho o meu rosto, vertendo suor sobre esse meu corpo dobrado e dilacerado por uma nova vida, uma nova chama, uma nova esperança, um novo prazer, a velha angústia.

Sulcar a carne não é fácil. Todos o sabemos. São necessário um arado bem forte e uma boa besta. Se o sulco não for fundo a semente não cresce. Apodrece a semente na terra.

Se for demasiado fundo também não é bom pois gasta-se o arado na pedra. Mas se a vala cravada não for funda vai se lá com as unhas até sangrar o suficiente até já não nos doer. Esgotamo-nos ali sobre o chão de hortelã, estendidos, perfumados em pureza cínica até chegar uma enfermeira que nos lamba a pele. Num ápice as estrelinhas são cadentes e a memória é um filme poeirento gravado em BETA CAM.

Depois de amanhã, no lodo estagnado sobre a minha almofado, vestirei o pijama que me coseste como a roupa que não serve para mais nada a não ser guardar o corpo de um pouco de frio. Estarei por aí pregado numa janela, o Salvador, sempre com o mar e palavras indenunciáveis a romper-me os olhos.

Amanhã, depois de amanhã não são Agora! Esta noite rói-me. Esta luz fere-me e parece-me eterna. Fecho-me, escondo-me em mim e encontro-a novamente. É a asfixia da sede. Se esperares verás que um dia será maravilhosa. Tenho a certeza de poder dizer: EU AMO!

quinta-feira, setembro 14, 2006

Cai-nos a morte em cima
sem carícias. Abrupta.
Meus senhores, Minhas senhoras:
Afinal não há bandeiras negras
nem farrapos sibilantes
nem frio ou odores agoniantes
Cai-nos em cima e ficamos ali
sem saber mais em que crer
com um nome seco na boca
a língua numa redoma de recusas
e sentimos os olhos a rebentar
quando não são lágrimas que saem
mas memórias
querer encher de vida um corpo inerte
desejar dar sangue à mão de buril
que um dia nos soube esculpir
queriamos tanto, outra vez, novamente!
a morte sem nos fazer cair cai em nós
Não revelando à sua luz
que também iremos tombar
e quando cai ela Zomba de todos
ensurdecedora
Como se nos vazios batesse o eco da dor

sábado, julho 15, 2006

Fora de mim

Fora de mim, longe do mundo!
corpo enfermo que repouso vazio numa esquina
revisitado pretexto de lamber dos lábios o sal
do esquecimento
o apodrecimento minucioso das pequenas células, todas sem excepção a arder,
e uma voz ulcerosa que calo
resguardando o eco sufocante
com um tiro nos miolos
abatem as cinzas de betume cultural adquirido desde a nascença
merda para tudo isto!
merda que moldo entre minhas mãos
percebes?
Cresce o insulto medra a conspiração
Sobra-me sobretudo um sorriso
E contudo, até de mim mesmo devo desconfiar
Está-me no sangue! Percebes?
É a podridão humana que em mim habita. Ou melhor, que no meu corpo se aloja.
Receptáculo pútrido
Carcassa de ranço
Carrasco asfixiante do qual não me posso romper a não ser por este desdém
Este Ter, este possuir corpo já não me serve de nada. Finalmente!

domingo, julho 02, 2006

Uma Pequena Homenagem Partilhada


Pessoa que não conheci, rosto da Utopia, rosto que reconheço. Voz penetrante e garras das entranhas brotavam por qualquer sentimento que exprimia. Homem simples e mortal, sofreu a realidade da carne e na alma o fervor dos ideais. Penso nisto do que lhe conheço, do que me transmitiu com as primeiras frases cantadas. José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos de seu nome, nascido 1929, soube, vivo, despir-se dos uniformes que lhe vestiram, e hoje, já morto, agarram-no para lhe vestirem outros uniformes propagandísticos, como a um santinho de procissão. Coitado do Zeca.
Não tenho ídolos ou exemplos a seguir do alto, sejam terrenos ou celestiais, sempre segui aprendendo com todos os que me trazem novidades apetecíveis. Tanto as virtudes com vícios são-me servidas pela vivência. Nunca tive heróis. Contudo, José Afonso dos Santos É possivelmente o único homem que admiro verdadeiramente. Admiro-o, podem crer! Pelo músico que foi, pelo papel de cronista que soube desempenhar com humor, por ter sido capaz de colocar tamanha humanidade, a sua, em todas canções que nos deixou. Por toda a sua simplicidade. Pela sua capacidade de entrega a um povo, a uma vontade cultural repleta de variantes em várias anotações.

Deixo-vos o poema da música "As Pombas" (Luís Andrade/José Afonso), do albúm "Os Vampiros".


Pombas brancas
Que voam altas
Riscando as sombras
Das nuvens largas
Lá vão
Pombas que não voltam
Trazem dentro
Das asas prendas
Nas bicos rosas
Nuvens desfeitas
No mar
Pombas do meu cantar
Canto apenas
Lembranças várias
Vindas das sendas
Que ninguém sabe
Onde vão
Pombas que não voltam

(dados biográficos e fotografia clandestinamente retirados do site http://www.azeitao.net/zeca/index.html)

terça-feira, junho 27, 2006

ASSOCIAÇÃO RESPIGARTE




Há poucos meses nasceu este projecto chamado Respigarte
Têm-se dados os primeiros passos timidamente, em processo de aprendizagem.
Prentende-se melhorar um pouco mais a cena cultural da nossa autarquia, da nossa região, do nosso país, e porque não do nosso mundo. Respigar arte, fazer da espiga miúda o pão, colher o que se deixa esquecido por não ser comercializável. Ainda existem pessoas irrequietas e pessoas de bons principios a querer mudar qualquer coisa que os deixa insatisfeitos. Foi curioso verificar a rapidez com muitos se identificaram a este ideal de respigador.
A quem ainda ler este blogue, faz-se o convite para se juntar a nós. Ou pelo menos, se o desejarem podem auxiliar-nos, com livros que tenham a mais, com pessoas que conheçam e queiram mostrar um pouco da sua arte, com dinheiro também mas não é de facto essêncial, a forma perfeita de ajuda é mesmo a de respigar procurando novas espigas esquecidas.
Quem queira conhecer um pouco mais dos objectivos desta associação que me envie um email para artmiserra@hotmail.com ou para respigarte@gmail.com

passagem

Existe em mim outra pessoa. Tem o hábito da fuga, a pressa dos instantes, detém a paixão pelos movimentos eternos. Encontrou um caderninho antigo no outro dia. Parecia estar esquecido. Ambos estavam esquecidos. Folheou o caderno avidamente como se o passado fosse o instante a viver de seguida, folheou-o sem se encontrar nesse futuro. Compreendeu então a teimosia com que persistia em mim, fez as malas e pirou-se. Estava sentado numa destas estações de caminho de ferro dos arredores de Lisboa e a brisa erguia-se tão doce que tinha sabor. Sei apenas que chegou um comboio à linha número 4, a mesma em que eu estava à espera e tive apenas a vontade de ficar ali sem pressas, deixando partir o comboio, a acompanhar esse movimento de partida. Mais tarde ou mais cedo estará de volta.